quinta-feira, 18 de junho de 2015

Governança flexível

Governança flexível | Valor Econômico

Governança flexível

Leo Pinheiro/ValorLeonardo Pereira, presidente da CVM: "Isso não quer dizer que o melhor sistema não seja 'uma ação, um voto', mas que talvez seja possível conviver com outras estruturas, desde que elas tragam instrumentos que limitem os riscos"

Nos últimos meses, diante dos vários problemas de governança apresentados pelas companhias brasileiras e do aumento das operações de fechamento de capital, várias entidades do mercado estão discutindo medidas para revigorar a imagem das melhores práticas no país. São ideias para reformas no código de governança do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), no Novo Mercado e também a criação de um código único de governança corporativa no país. Um dos temas que têm gerado as discussões mais acaloradas e que pode afetar diretamente a vida dos investidores é a possibilidade de incorporar como uma boa prática estruturas acionárias em que cada ação não represente um voto - contrariando um dos pilares do Novo Mercado da Bovespa.

O assunto está em debate mundialmente. Esse tipo de estrutura tem sido comum nas companhias do Vale do Silício, em que o fundador não quer abrir mão do controle. Facebook, Linkedin e Groupon negociam ações nos Estados Unidos que dão superpoderes a seus controladores, cuja exposição econômica ao negócio não é proporcional ao direito de voto. Já o Google lançou ações sem direito a voto.

A lógica dessas estruturas é dar condições para que fundadores, pessoas tidas como geniais e fundamentais para o negócio, tenham mais poder de comando e comprometimento de longo prazo com as companhias. O que permeia essa discussão, mundialmente falando, é o fato de, nos tempos atuais, ser cada vez menor o tempo em que o investidor permanece com as ações em carteira, na geração dos algoritmos e dos negócios de alta frequência. Para muitos, isso pode querer dizer que a empresa fica muito mais pressionada a entregar resultados de curto prazo, o que colide com o pensamento tradicional de longo prazo que o investidor institucional de ações deveria ter. Oferecer esse poder de voto especial ao fundador e principal gestor seria uma garantia de perenidade da empresa, por um lado. Mas, por outro, poderia também ser um fator a facilitar os abusos de controle, prejudicando os minoritários.

As bolsas no Estados Unidos acolhem esse tipo de instrumento, sem discussões, assim como as Euronext de diversas praças da Europa, como Lisboa e Amsterdã. Na Suécia, isso também é comum. O Reino Unido não abraça essas estruturas, embora existam alguns casos listados fora de seus segmentos principais. O site chinês de comércio eletrônico Alibaba optou pelo mercado americano para fazer o maior IPO do mundo, abrindo mão de lançar ações em Hong Kong, porque a bolsa local não aceita o formato. Ao perder uma das principais empresas hoje da região, a Bolsa de Hong Kong promove audiência pública para discutir a possibilidade de abrigar essas estruturas. Cingapura já eliminou as restrições.

Além das ações sem direito a voto e com superpoderes, há outras possibilidades. Em Paris, as empresas ofertam ações cujo poder de voto cresce com o passar do tempo. Se o investidor permanecer por dois anos com o papel, seu voto também passa a valer por dois. Essas ações, chamadas de "loyalty shares" (ações de fidelização, em uma tradução livre do termo em inglês), também podem oferecer mais dividendos com o passar do tempo.

"Esse tema é polêmico. O cuidado que se precisa ter é avaliar em quais casos seria possível flexibilizar as estruturas de capital. Isso não quer dizer que o melhor sistema não seja 'uma ação, um voto', mas que talvez seja possível conviver com outras estruturas, desde que elas tragam instrumentos que limitem os riscos", afirma Leonardo Pereira, presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). "Para alguns casos, por exemplo, o de um controlador brilhante e que vai reter o papel por muito tempo, você pode ter uma exceção. Acho válido discutir o assunto, mas com o cuidado para que não haja um retrocesso", afirmou Pereira.

No Brasil, essa estruturas já existem, com a emissão de ações preferenciais (PN), que oferecem mais dividendos e não dão direito a voto, e também com o modelo aprovado pela CVM para companhias aéreas como a Azul, com as "superpreferenciais", que acabam garantindo o controle a um sócio, embora com algumas proteções aos acionistas previstas no estatuto.

Por conta de questões regulatórias, investidores estrangeiros não podem ter mais que 20% do capital votante de companhias aéreas. Assim, para que essas empresas captassem no exterior foram criadas as suprepreferenciais, que não dão direito a voto, mas valem muito mais que as ordinárias e recebem muito mais dividendos. Na Azul, as PNs têm direito a dividendos 75 vezes maiores. A emissão dessas ações acaba concentrando o poder de voto nas mãos de quem fica com as ordinárias, no caso dessa empresa David Neeleman, que pertence à lista dos empresários considerados como "geniais". A Azul ainda não concretizou a abertura de capital, mas devido às condições de mercado.

Para Maria Helena Santana, ex-presidente da CVM, o mercado brasileiro sinaliza que tem demanda para as ações preferenciais e também para estruturas mais alavancadas de controle. "Não vejo como algo intransponível, mas vai depender das compensações oferecidas. Acho que é preciso adotar cautelas", diz Maria Helena.

Entre as cautelas, ela defende que os direitos econômicos dos demais acionistas devem ser equivalentes à participação no capital. "Isso é muito importante. Seja numa eventual reorganização societária, numa venda de controle, na questão dos dividendos, os direitos econômicos daqueles que não votam devem ser atribuídos na proporção do capital que eles aportaram", afirma. Além disso, Maria Helena diz que deve haver outras proteções, como a ação perder o supervoto se ela for vendida, ou o poder de veto dos acionistas em questões de remuneração e de outros temas clássicos, com transações entre partes relacionadas.

Para Maria Helena, o mercado pode ser mais rico do que um modelo só e ainda assim ser saudável, mas "desde que as ações de 'enforcement' funcionem e proteções sejam estabelecidas para os investidores, com muita transparência". "Se você conseguir impedir o abuso de poder, a presença desse controlador comprometido tende a ser benéfica", afirma.

Ver também: Ações com direitos distintos ameaçam minoritário, diz Amec



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