Por Fernando Torres | De São Paulo
Não bastassem a alta de custos, os problemas operacionais e o enfraquecimento da demanda, as incorporadoras imobiliárias ainda têm de lidar com um descrédito crescente em relação a seus balanços, cujas regras contábeis elas tanto lutaram para manter.
As incertezas em relação às empresas desse setor na bolsa, portanto, não se resumem ao futuro delas e do mercado imobiliário no Brasil, mas também ao passado, o que tem uma relação direta com a contabilidade do segmento.
Entre as 15 maiores empresas do setor com capital aberto, oito estão com valor de mercado inferior ao patrimônio líquido - Brookfield, Even, Gafisa, PDG, Rossi, Tecnisa, Trisul e Viver .
Ao longo de 2010, no ano final de transição do padrão contábil brasileiro para o internacional IFRS, as incorporadoras se mobilizaram por meio da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca) para manter a regra contábil que permite o reconhecimento da receita ao longo da obra - e não somente na entrega das chaves, como é a prática mais comum na maioria dos países que segue o padrão internacional.
Tiveram o apoio do professor Eliseu Martins, um dos maiores especialistas em contabilidade do país, e venceram os auditores na batalha de argumentos para convencer a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) de que esse era o método mais adequado aos contratos de compra e venda usados no Brasil.
O que talvez elas não esperassem é que isso tivesse como efeito colateral uma descrença séria em relação a seus balanços.
É evidente que a regra contábil não afeta o negócio em si. Ainda que a leitura brasileira do IFRS tivesse seguido a corrente mundial, os estouros de orçamento teriam ocorrido da mesma forma, assim como os distratos de clientes inadimplentes (veja detalhes sobre os ajustes mais comuns nesta página).
A diferença é que essas idas e vindas não transitariam pelo resultado das empresas, afetando o lucro líquido e a consequente distribuição de dividendos.
Os ajustes seriam feitos no processo de formação do estoque. Quando a receita fosse reconhecida, na entrega das chaves, seria reconhecida a margem final de cada projeto, com possibilidade bem menor de ajustes.
No exemplo mais evidente até agora, a Gafisa teve que estornar R$ 1,05 bilhão de receita em 2011 e outros R$ 160 milhões de 2010. Incluindo provisões para multas por atraso, provisões para devedores duvidosos e redução de valor terrenos contabilizados nos estoques, o efeito no lucro líquido foi negativo em R$ 889 milhões.
Considerando apenas o ajuste oficialmente feito pela Gafisa no lucro de 2010, de R$ 416 milhões para R$ 264 milhões, foram pagos R$ 36 milhões em dividendos além do que seria devido se a empresa quisesse pagar o mínimo obrigatório. O valor pago foi de R$ 99 milhões, mas pelo lucro corrigido seria de R$ 63 milhões.
A remuneração dos acionistas, portanto, foi feita sobre uma base de lucro que se mostrou maior que a real - ou ao menos maior do que devia naquele momento.
O mesmo argumento vale para a remuneração. A Gafisa não pagou bônus de curto prazo a seus principais executivos referentes ao resultado de 2011, que foi um prejuízo de R$ 944 milhões. Mas os diretores da companhia receberam bônus de R$ 2,79 milhões em 2010. O valor pago representou 53% do pagamento previsto caso as metas fossem plenamente atingidas.
É possível que, se os ajustes que derrubaram o lucro de 2010 em 36% tivessem sido reconhecidos a tempo, o bônus fosse menor.
No caso da PDG, outra empresa que teve que fazer ajustes de orçamento, existe uma previsão de que o bônus de curto prazo seja diferido por um ano, exatamente por conta do sistema de reconhecimento de receita. Dado o ciclo mais longo do setor, no entanto, há quem considere o prazo curto.
Dois defensores do reconhecimento da receita ao longo da obra que pediram para não se identificar argumentam que o problema não está na norma contábil, mas sim nos controles internos - ou na falta deles - das incorporadoras, que cresceram muito rapidamente e não conseguiram checar os orçamentos e o andamento das obras com a periodicidade devida.
O Secovi-SP, sindicato que representa as empresas do setor, faz questão de dizer que as discussões contábeis com a CVM foram lideradas pela Abrasca. Mas a entidade também defende a regra atual. "A metodologia contábil usada pelo setor não é perfeita, como qualquer outra, mas na opinião do Secovi-SP é a que melhor reflete a realidade economica das empresas, que é o objetivo da contabilidade", diz Alessandro Vedrossi, diretor da área incorporações e terrenos urbanos do sindicato.
Para ele, a alternativa de se reconhecer apenas na entrega das chaves poderia causar uma distorção até maior do que a que existe hoje. "Tem muita coisa acontecendo ao longo da obra, receitas, gastos etc. Se fizesse tudo no 'Habite-se', seria como ter uma empresa quase pré-operacional, já que os projetos demoram três ou até quatro anos."
Procuradas, Gafisa e PDG não se manifestaram.
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